Estava em Trindade, quando li a maior parte do livro em destaque. Um dos únicos lugares do Brasil onde você pode encontrar do seu lado, sentado na areia, um "Hippie Punk, traidor do movimento", lendo tranquilamente algum livro de Jack Kerouac e olhando para o mar com olhos vermelhos, cabelo e tatuagens ao vento.
Pois a minha viagem era outra. Totalmente outra. Comprei o livro após ler uma reportagem na folha "Mais" de Domingo, onde se comparava o livro de Santiago Gamboa, com a produção de Henry Miller, que o livro em questão trata-se da desmistificação do sexo em Paris, porém sem o glamour do sexo de outrora, com um toque realista/cru/seco, que Miller não tinha. Um retrato das gerações atuais.
Sem querer ser hipócrita a bela capa(vide supra) ajudou na hora da aquisição.
Nunca escondi que sou fão do Henry Miller, então...livro em riste, comecei a agradável leitura, já que Gamboa provavelmente pertence a geração "Macondo", seu texto é claro e detalhista, suas situações são hiper-realistas e de muito interesse.
Trata-se da estória de um escritor colombiano(escrita por um escritor colombiano) que a pretexto de se dedicar a um curso de literatura meia boca na Sorbone(conforme o próprio autor), se dedica a muitas outras "cositas" bem interessantes em sua adorável "chambrita" nos subúrbios de Paris.
"que rico!"
Temos então várias estórias dentro da estória central:
A estória principal é a dos imigrantes que tentam a sorte em País distinto e não consegue se adaptar, enfrentando a "Síndrome de Ulisses", que hoje é reconhecida como distúrbio mental decorrente da inadaptação do estrangeiro às novas culturas e ambientes que são inseridos as vezes pelo exílio voluntário ou involuntário.
Analisamos então várias estórias riquíssimas, que relatam a miséria e a ausência total de "glamour" de Paris e seus arredores.
A princípio acompanhamos a trajetória do próprio protagonista e suas dificuldades econômicas, psicológicas e sociais para atingir o seu sonho de ser escritor, dando aulas de língua espanhola , laborando em um restaurante Coreano(lavando pratos) e frequentando o curso nada aprazível da Sorbonne, entre banhos em banheiros públicos, suas desavenças e desencontros amorosos, entre um prato de comida(quando possível) e muita bebida(sempre).
Paralelamente acompanhamos o mundo de misérias humanas dos personagens secundários; o sonho se transformando em pesadelo , o sexo que antes era um elemento libertador(na década de 60 e 70) agora se apresenta como mero vício ou válvula de escape para as agruras do ambiente hostil. (o livro tem muito sexo – basta ver a capa)
E que ambiente hostil. A Paris da Torre Eiffel e do Arco do Triunfo esconde os súburbios de preconceito e miséria dos imigrantes que buscam um sonho intangível.
O protagonista como um facilitador vai entrando em todos os ambientes, tais como a turma da Colômbia, a turma do restaurante em especial um coreano do norte e sua vida(verdadeiro símbolo do livro), a prostituição das colegas de restaurante , romenas e a exclusão da turma da Europa Oriental, os Parisienses e seu ódio e fascínio e o conflito entre esses sentimentos em razão dos imigrantes. O problema das drogas e muita bebida e muito sexo e muita ausência de objetivo. (A personagem Paula a colombiana riquinha e doida por sexo é memorável) .
Temos tambem como outra estória da violência desencadeada pelo conflito(personagem Nestor e seu namorado francês Gaston).
Em suma: O autor desce literalmente nos esgotos de Paris.
Aliás esse é o livro dos excluídos, dessa turma imensa que perambula às margens da globalização, que busca o seu espaço cada vez mais restrito em um mundo de alta competitividade e com um inchaço de informação e população.
Ou seja, peguei o livro meio ao acaso e não esperava tanta atualidade, e também tanta sacanagem e destreza com as palavras. Santiago Gamboa brinca com as cenas de sexo e miséria, chegando ao cúmulo do exagero inclusive citando o seu ídolo Henry Miller algumas vezes no texto e nas entrelinhas nos brindando com muitas análises literárias e visões de vida como o próprio Miller fazia.
Enfim, diria que é um livro fundamental, dessa nova geração que estuda muito para escrever romances, sendo até sustentável tratar-se em grande parte da vida do próprio autor, que segundo a orelha do livro "em Paris estudou literatura cubana na Universidade de Sorbonne" Portanto qualquer similiaridade não é mera coincidência."
Sessão frases grifadas(eu detono os livros que leio – não me empreste):
"é verdade que existe uma zona de realidade onde são vividos os contrários, onde vai parar o vômito e o excremento daquelas belas mulheres e daqueles dândis que, em cima, na cidade solar representam os ideais do mundo"
"bem, eu disse, todos fazemos em algum momento uma descida aos infernos, ou várias descidas, e alguns ficam para viver neles ou não conhecem outra coisa e portanto não sabem que estão no inferno, mas você tem razão, o inferno existe e como existe. E existe aqui."
E eu lá em Trindade, olhando aquele paraíso na minha frente e o ambiente cinza parisiense em meu colo, a Paris dos jornais e das rebeliões incendiárias que aparecem todos os dias na nossa casa na televisão, a Paris que no seu microcosmo representa o macrocosmo inclusive a própria praia de Trindade, que a cada ano que passa tem mais casas, mais especulação mais gente e mais gente estranha fora do contexto.
Sessão dica de viagem: Aproveitem Trindade agora! Já! Corram para lá com urgência!
De certo o doidão do meu lado, cabelo e tatuagens ao vento estava lendo um livro mais apropriado para o local. Mas mesmo assim, e de caso pensado adorei!
Nem só de mar e brisa vive o homem e se for pensar mesmo tanto eu como o doidão estamos a margem de algo que não compreendemos. Vamos abrir os olhos vermelhos de droga ou de sono para não chorar de verdade amanhã! Isso se chama consciência, ou seja percepção imediata da própria experiência e percepção de um modo geral.
Última frase do livro: "mas a lona do circo não tinha luz e todos, naquele desolado aeroporto, pareciam ter ido embora ou estar mortos"
FIM