segunda-feira, 10 de agosto de 2015

VIDAS SECAS 1

foto - Silas Batista /Globoesporte.com/pb


Já se vão quatro dias neste cativeiro infernal, sem água e sem comida decente, vivendo a base de pão de forma com molho tártaro. Filhos da puta. Dei azar com esses sequestradores de merda. Só me resta pensar na vida e esperar, esperar, esperar...

  Sei que em virtude da falta d’água estou perdendo 2 litros e meio por dia, urinando e defecando no chão, o cheiro de bosta e mijo  insuportável  e  suando, suando feito um porco nesse calor de matar. Trancado, humilhado, no escuro e sem ninguém para conversar; resta saber se os poucos parentes  ou a burrinha da minha mulher vão conseguir sacar o meu dinheiro para me resgatar. Resta saber se alguém vai se importar com meu desaparecimento. Pelo menos estou emagrecendo. Isso é bom. Aliás tudo tem seu lado bom, até eu.

  Só posso como já salientado refletir sobre a vida. Nasci em família pobre, meu pai era caixeiro viajante, vendendo vassouras e rodinhos de porta em porta. Bonitão ele...de vez em quando eu ficava horas na calçada de formosas donas de casa esperando papai sair e demonstrar seus apetrechos para elas. O tempo que esperava deitado na sarjeta contando baratas no bueiro dava pra ele passar o rodo  na casa inteira das vadias. Filho da puta.

  Depois ele morreu, pobre como veio ao mundo e eu assumi os negócios para ajudar mamãe em casa. Não tenho irmãos. Comecei como caixeiro, depois camelô, montei uma lojinha, depois uma loja grande, uma segunda  e hoje sou um dos maiores empresários do comércio varejista do Brasil. Acho que prosperei. O que significa que qualquer idiota é capaz de ganhar dinheiro e ficar milionário. Assim como qualquer idiota pode ser estupidamente seqüestrado e ficar nesse quartinho sem água comendo pão com molho tártaro. Fique esperto heim?

  Ano passado mamãe morreu. Não consegui derramar uma lágrima. Fiquei mais triste com a crise da bolsa que ocorreu no mesmo ano. Mas sobrevivi. E depois da crise veio a bonança. Nunca vendi tanto. A morte da mamãe me deu sorte. Carrego essa crença comigo.

  Bem, não sou bonitão como meu pai, mas tenho meus encantos, pele rosada, olhos castanhos e bigode grosso. Casei com a Érica, manicure e pedicure na época das vacas magras. Érica me amava, eu me encantei por suas pernas , nádegas salientes e peitos saltitantes e casamos por absoluta conveniência. Ela era fiel, gostosa, me amava e não se importava com os meus negócios até altar horas da noite. A mulher ideal. Burrinha de dar dó.

  Com o tempo a relação foi assumindo ares de enfado, ela não podia ter filhos por um problema no aparelho reprodutor que sequer sei do que se trata  até hoje, nem quero saber e o sexo protocolar era um tédio existencial profundo, uma mesmice desmedida e comecei a colecionar traições. Trinta e nove ao todo se não me falha a memória;

 Com uma funcionária lá da loja tive um filho...ou acho que tive um, a ação de paternidade ainda não foi julgada e estou fugindo do DNA a oito anos.

 Depois trepei com duas amigas da Érica, uma inclusive do mesmo salão de beleza em que a  conheci. Bem burrinha também. Gostosinha também.

 As outras trinta e quatro foram prostitutas, sem contar dois travestis que peguei nas ruas do centro da cidade, pertinho da loja matriz onde tudo começou. Confesso que com eles tive a melhor relação da minha vida. Com eles transcendi e ultrapassei algumas barreiras impostas pela educação austera  de papai.  Mas na minha posição nunca pude assumir uma porra dessas e continuo vivendo de aparências com a burrinha da minha mulher. Esqueça esse detalhe de travestir por favor. É mentira viu?

  Minha Rede de Lojas patrocina um time de futebol popular. Todos acham que adoro o time já que o patrocínio se estende por vários anos, mas gosto mesmo é do centro-avante gostosão e de ver a minha marca estampada naqueles abdomens sarados e suados. Confesso que estou excitado. Só me faltava essa... excitado nessa situação. Só eu mesmo! Deve ser a falta d’água.

  Tirando isso nunca plantei uma árvore, não escrevi um livro, talvez tenha um filho hoje com uns 10 ou 11 anos que nego até a morte se precisar. Meu advogado é fodão pra caralho. Gosto dele.

  Tenho um carro do ano importado, uma bela casa no melhor condomínio fechado da cidade, quadros do Romero Brito, sonego impostos desde o tempo de caixeiro  e uma tv de tela plana de 50 polegadas onde costumo assistir os shows do Latino. Aliás acho o Latino o máximo. The best. Meu sonho de consumo. Ainda quero ver um show dele e pedir autógrafo no camarim e postar uma foto com ele no Instagran. Coisa de macho é claro. Selfie de responsa.

  Outro dia matei um homem e fiquei muito chateado. Deu nos jornais. Foi acidente, tinha bebido algumas cervejas, pouca coisa é claro e por uma fatalidade dormi no volante. Fugi. Estava com a carta vencida e não podia esperar a polícia. Ninguém descobriu até hoje. Apaga essa também por favor. Olha lá heim? “Não respeito delator”. Quem foi que disse isso mesmo?

  Mas também para compensar, todo ano faço uma bela doação de eletrodomésticos para o asilo da cidade. Maravilhoso ver a carinha de contentamento dos velhinhos ao lado das enceradeiras, ferros e torradeiras elétricas. É claro que tenho uma bela isenção nos poucos impostos que não sonego. Esse governo é uma piada mesmo.

  Quero derrubar a Presidente. Quero mesmo, com convicção. Fui nas passeatas, levantei faixas, cumpri o meu dever cívico.

  Enfim depois de todas essas ilações chego a conclusão que sou uma ambiguidade humana como a maioria dos empresários e das pessoas de bem deste País. Não me venha com hipocrisia. Acho até que sou um cara bem legal na medida do possível. Acordo cedo, leio os jornais, faço academia e depois vou para o meu escritório, delegar funções, analisar balanços e estratégias de venda, marketing e enviar dinheiro para as Ilhas Cayman. Tenho uma pele lisa e um barbear rente e macio, como diria um velho desafeto  que não vejo a tempos, Marcelo Mirisola.

  Perfeitos só eles mesmo, Deus e Jesus, ou seriamos fruto do acaso? Sei lá nunca li Darwin ou Stephen Halkins. Aliás odeio biologia e física. Gosto das coisas práticas, tipo....comer batatinha Chips com molho barbecue e  cortar cabelo com máquina zero.

  Aliás, pensando bem nunca li porra nenhuma. E  livro de  ficção, é coisa de boiola. Sou macho viu? Aquela estória de travestis ali em cima era só brincadeira. Sou um mentiroso contumaz na maioria das vezes. Não acredite em nada que digo ou que escrevi, já dizia um antigo Presidente que não lembro o nome.
 
  Bem...como toda regra tem sua exceção gosto dos livros do Paulo Coelho e do Roberto Shynyashiki.

  Meu Deus, ou sei lá o que aí em cima, que situação calamitosa?!!! será que vou escapar desta? Confesso mais uma vez nesse mar de confissões que estou com medo? Um vazio, misturado com vergonha e arrependimento desta vida de merda que levei até agora. Que porra de balanço de vida foi esse? E o pior é que não tem mais nada. Não tem um grande amor, uma grande viagem, um grande feito ou enfrentamento. Só mentiras e vaidade. Troquei a vida por nada, corri atrás do vil metal e vou morrer como um verme. Não terei mais a minha tão sonhada  festa lá no meu apê. Covarde...um reles covarde.

  E enquanto assim pensava para passar o tempo, como um verdadeiro milagre, um estrondo abriu a porta do cativeiro. Um clarão incidiu diretamente nos meus olhos e quase me cegou. No fundo da visão recalcitrante  um policial muito forte e bonito, ou anjo da guarda, sei lá, veio ao meu encontro e foi puxando meu braço e  dizendo:

 - Doutor o senhor está livre, venha comigo, o pesadelo acabou.

  Ao sair pela porta arrombada, pude ver que estava num bairro da periferia da cidade que já tinha passado algumas vezes e nunca tinha reparado muito;  milhares de câmeras de televisão das maiores redes do País e do exterior transmitiam ao vivo o feliz desfecho do sequestro e os repórteres insistiam:

  E aí, como foi? Está bem? Saudades da esposa? Da família? Dos amigos? Gostaria de dar uma declaração, Uma declaração por favor estamos ao vivo? Diga Algo?!?!?!? Pra posteridade!?!?

  Foi quando uma cerca viva de microfones fechou-se em frente a minha boca seca e, sem escapatória, eu pude gritar em alto e bom som para o mundo todo ouvir:


  - EU QUERO UM COPO D'ÁGUA!



autor do texto: Luiz Tinoco Cabral - todos os direitos reservados

domingo, 2 de agosto de 2015

OSSOS DO ORIFÍCIO

(foto extraída da internet - autor desconhecido)



  Me chamam de Ricardo da Cruz, uma alusão ao negócio da família de venda de crucifixos de osso que já dura três gerações. Não sou rico. Se a família tivesse investido em crucifixos de ouro, ou prata, que seja, estaria numa situação melhor. Não reclamo. São os ossos do meu ofício.

  Sou discreto. Faz parte do meu negócio ser discreto. Aqui cabe revelar um segredo que poucos sabem. A matéria prima dos nossos crucifixos é osso humano a  30 anos. No princípio vovô usava osso bovino, eqüino, caprino. Meu pai também. Mas o sucesso veio quando consegui um contato no IML aqui da cidade que passou a me fornecer ossos humanos para a lapidação dos crucifixos. Muitos cadáveres da cidade foram enterrados sem os ossos apenas com enchimento no lugar do fêmur ou da patela. Os parentes nem imaginam. Meu fornecedor é um artista e a legalidade desse procedimento é duvidosa, mas a consistência e a maleabilidade desses ossos nem se compara aos de outros animais de pequeno e grande porte. Saliente-se a título de ilustração   que  um pequeno e mísero  pedaço de osso humano  consegue suportar até 9 toneladas de carga.


  Incrível como o meu negócio prosperou após essa inovação. De forma inconsciente, e principalmente às mulheres ao se depararem com meus crucifixos nas vitrines das lojas sentem uma grande e irresistível atração. Não sei se é o osso, minha arte, ou quiçá a própria morte. O que interessa é que as vendas aumentaram, o que me possibilitou ter mais horas vagas para apreciar as belezas desse mundo, mais especificamente elas, às mulheres.

  Quando não estou trabalhando tenho por hábito sentar nesse banco aqui no parque com um lago bucólico  e um lindo caminho de pedras, onde agora escrevo. Não é uma parque movimentado, isso é proposital. Gosto de tranqüilidade. Fico aqui com meu caderninho e caneta esperando pacientemente a passagem delas. As mulheres bonitas, e claro, ossudas. Tenho um critério diria, peculiar, para analisar a beleza feminina. Enquanto a maioria dos homens repara na carne, nas nádegas, nos seios, eu, talvez por dever de ofício fico imaginando como um super-homem e sua visão de raio-x  a ossatura, a carcaça que se esconde atrás dos músculos, veias e do calor do sangue.  O erotismo é muito mais forte nas entranhas mas poucos sabem. Nessas horas a ereção peniana é inevitável. Anoto algumas características que me vem à cabeça e corro para casa para praticar os solitários prazeres e artes de Onan.

  Opa, lá vem uma:

  Mulher de estatura mediana, cabelos loiros, na faixa de 30 anos, roupa de ginástica, carrega uma sacola azul, deve conter alguns vegetais, saindo da ginástica e indo para casa comer brócolis com cenoura, fêmur de 43 centimetros. Que delícia, queria poder chupar esse fêmur.

   Lá vem outra:

  Mulher baixa, cabelas castanhos, 29 anos, roupa muito fechada, carrega uma bíblia, deve ter saído da igreja, a princípio nada excitante, mas veja lá, que orelhinha....três ossinhos e um estribo de 3 milímetros. Esse dá para sentir com a língua. Já tive essa experiência e recomendo sem pestanejar. Delícia.

  Oba, hoje o negócio está bom, diria muito bom.

  Mulher alta, negra, uma Deusa, cabelo encaracolado, perfume de jasmin, porta um livro de direito, “Teoria Pura do Direito” de Hans Kelsen, dá para ver a capa; um decote que deixa vislumbrar a ondulação dos seios e como sempre me ocorre o inevitável. Tenho uma enorme ereção ao imaginar  aquela coluna esbelta e suas trinta e três vértebras cartesianamente enfileiradas para o puro deleite; o cheiro do osso, o cheiro do amor inatingível.

  Sei que você deve estar pensando que eu tenho problema psiquiátrico, que deveria me tratar, que sou um tarado incorrigível, com uma tara inexplicável, quase um pisicopata, mas o que posso fazer se esse sentimento domina todo meu ser a todo instante. A coisas que vão muito além da nossa capacidade de entendimento. Friso que não sou um necrófago, um serial killer ou coisas do tipo, mas apenas um voyeur pacato e inofensivo cumpridor dos seus deveres e pagador de impostos.

  O fato é que hoje já na saída do parque e após fazer estas anotações tive uma experiência sobrenatural que nunca tinha me ocorrido. Ao olhar a minha própria imagem refletida nas águas do lago que circunda o parque pude ver de forma cristalina e transparente o meu próprio esqueleto, todo ele completo e  libidinosamente tesudo.

  E ao focar a visão nas minhas vértebras sacrais, um fenômeno instantâneo e narcisístico  ocorreu:

  Foi amor à primeira vista e agora estou  desesperadamente  apaixonado pelo meu próprio esqueleto; Porém o que me deixa realmente pasmo, estupefato é que nunca fui muito chegado em esqueletos masculinos. Mais essa agora....

  Pensando bem talvez você tenha razão e eu  deva mesmo consultar um analista e levar essas anotações para ele verificar.

  Antes porém e por via das dúvidas vou no laboratório aqui perto fazer uma radiografia de corpo inteiro. Quero pregar a chapa na parede, em frente à privada do banheiro lá de casa.


  O onanismo ainda me mata. Será que tenho cura? Vai ser osso.

autor: Luiz Tinoco Cabral (todos os direitos reservados)