foto - Silas Batista /Globoesporte.com/pb
Já
se vão quatro dias neste cativeiro infernal, sem água e sem comida decente,
vivendo a base de pão de forma com molho tártaro. Filhos da puta. Dei azar com
esses sequestradores de merda. Só me resta pensar na vida e esperar, esperar, esperar...
Sei que em virtude da falta d’água estou
perdendo 2 litros e meio por dia, urinando e defecando no chão, o cheiro de
bosta e mijo insuportável e suando, suando feito um porco nesse calor de
matar. Trancado, humilhado, no escuro e sem ninguém para conversar; resta saber
se os poucos parentes ou a burrinha da
minha mulher vão conseguir sacar o meu dinheiro para me resgatar. Resta saber
se alguém vai se importar com meu desaparecimento. Pelo menos estou emagrecendo.
Isso é bom. Aliás tudo tem seu lado bom, até eu.
Só posso como já salientado refletir sobre a
vida. Nasci em família pobre, meu pai era caixeiro viajante, vendendo vassouras
e rodinhos de porta em porta. Bonitão ele...de vez em quando eu ficava horas na
calçada de formosas donas de casa esperando papai sair e demonstrar seus
apetrechos para elas. O tempo que esperava deitado na sarjeta contando baratas
no bueiro dava pra ele passar o rodo na
casa inteira das vadias. Filho da puta.
Depois ele morreu, pobre como veio ao mundo e
eu assumi os negócios para ajudar mamãe em casa. Não tenho irmãos. Comecei como
caixeiro, depois camelô, montei uma lojinha, depois uma loja grande, uma
segunda e hoje sou um dos maiores
empresários do comércio varejista do Brasil. Acho que prosperei. O que
significa que qualquer idiota é capaz de ganhar dinheiro e ficar milionário.
Assim como qualquer idiota pode ser estupidamente seqüestrado e ficar nesse
quartinho sem água comendo pão com molho tártaro. Fique esperto heim?
Ano passado mamãe morreu. Não consegui
derramar uma lágrima. Fiquei mais triste com a crise da bolsa que ocorreu no
mesmo ano. Mas sobrevivi. E depois da crise veio a bonança. Nunca vendi tanto.
A morte da mamãe me deu sorte. Carrego essa crença comigo.
Bem, não sou bonitão como meu pai, mas tenho
meus encantos, pele rosada, olhos castanhos e bigode grosso. Casei com a Érica,
manicure e pedicure na época das vacas magras. Érica me amava, eu me encantei
por suas pernas , nádegas salientes e peitos saltitantes e casamos por absoluta
conveniência. Ela era fiel, gostosa, me amava e não se importava com os meus
negócios até altar horas da noite. A mulher ideal. Burrinha de dar dó.
Com o tempo a relação foi assumindo ares de
enfado, ela não podia ter filhos por um problema no aparelho reprodutor que
sequer sei do que se trata até hoje, nem
quero saber e o sexo protocolar era um tédio existencial profundo, uma mesmice
desmedida e comecei a colecionar traições. Trinta e nove ao todo se não me
falha a memória;
Com uma funcionária lá da loja tive um
filho...ou acho que tive um, a ação de paternidade ainda não foi julgada e
estou fugindo do DNA a oito anos.
Depois trepei com duas amigas da Érica, uma
inclusive do mesmo salão de beleza em que a conheci. Bem burrinha também. Gostosinha também.
As outras trinta e quatro foram prostitutas,
sem contar dois travestis que peguei nas ruas do centro da cidade, pertinho da
loja matriz onde tudo começou. Confesso que com eles tive a melhor relação da
minha vida. Com eles transcendi e ultrapassei algumas barreiras impostas pela
educação austera de papai. Mas na minha posição nunca pude assumir uma
porra dessas e continuo vivendo de aparências com a burrinha da minha mulher.
Esqueça esse detalhe de travestir por favor. É mentira viu?
Minha Rede de Lojas patrocina um time de
futebol popular. Todos acham que adoro o time já que o patrocínio se estende
por vários anos, mas gosto mesmo é do centro-avante gostosão e de ver a minha
marca estampada naqueles abdomens sarados e suados. Confesso que estou
excitado. Só me faltava essa... excitado nessa situação. Só eu mesmo! Deve ser
a falta d’água.
Tirando isso nunca plantei uma árvore, não
escrevi um livro, talvez tenha um filho hoje com uns 10 ou 11 anos que nego até
a morte se precisar. Meu advogado é fodão pra caralho. Gosto dele.
Tenho um carro do ano importado, uma bela
casa no melhor condomínio fechado da cidade, quadros do Romero Brito, sonego
impostos desde o tempo de caixeiro e uma
tv de tela plana de 50 polegadas onde costumo assistir os shows do Latino.
Aliás acho o Latino o máximo. The best. Meu sonho de consumo. Ainda quero ver
um show dele e pedir autógrafo no camarim e postar uma foto com ele no
Instagran. Coisa de macho é claro. Selfie de responsa.
Outro dia matei um homem e fiquei muito
chateado. Deu nos jornais. Foi acidente, tinha bebido algumas cervejas, pouca
coisa é claro e por uma fatalidade dormi no volante. Fugi. Estava com a carta
vencida e não podia esperar a polícia. Ninguém descobriu até hoje. Apaga essa
também por favor. Olha lá heim? “Não respeito delator”. Quem foi que disse isso
mesmo?
Mas também para compensar, todo ano faço uma
bela doação de eletrodomésticos para o asilo da cidade. Maravilhoso ver a
carinha de contentamento dos velhinhos ao lado das enceradeiras, ferros e
torradeiras elétricas. É claro que tenho uma bela isenção nos poucos impostos
que não sonego. Esse governo é uma piada mesmo.
Quero derrubar a Presidente. Quero mesmo, com
convicção. Fui nas passeatas, levantei faixas, cumpri o meu dever cívico.
Enfim depois de todas essas ilações chego a
conclusão que sou uma ambiguidade humana como a maioria dos empresários e das
pessoas de bem deste País. Não me venha com hipocrisia. Acho até que sou um
cara bem legal na medida do possível. Acordo cedo, leio os jornais, faço
academia e depois vou para o meu escritório, delegar funções, analisar balanços
e estratégias de venda, marketing e enviar dinheiro para as Ilhas Cayman. Tenho
uma pele lisa e um barbear rente e macio, como diria um velho desafeto que não vejo a tempos, Marcelo Mirisola.
Perfeitos só eles mesmo, Deus e Jesus, ou
seriamos fruto do acaso? Sei lá nunca li Darwin ou Stephen Halkins. Aliás odeio
biologia e física. Gosto das coisas práticas, tipo....comer batatinha Chips com
molho barbecue e cortar cabelo com máquina
zero.
Aliás, pensando bem nunca li porra nenhuma. E livro de ficção, é coisa de boiola. Sou macho viu?
Aquela estória de travestis ali em cima era só brincadeira. Sou um mentiroso
contumaz na maioria das vezes. Não acredite em nada que digo ou que escrevi, já
dizia um antigo Presidente que não lembro o nome.
Bem...como toda regra tem sua exceção gosto
dos livros do Paulo Coelho e do Roberto Shynyashiki.
Meu Deus, ou sei lá o que aí em cima, que
situação calamitosa?!!! será que vou escapar desta? Confesso mais uma vez nesse
mar de confissões que estou com medo? Um vazio, misturado com vergonha e
arrependimento desta vida de merda que levei até agora. Que porra de balanço de
vida foi esse? E o pior é que não tem mais nada. Não tem um grande amor, uma
grande viagem, um grande feito ou enfrentamento. Só mentiras e vaidade. Troquei
a vida por nada, corri atrás do vil metal e vou morrer como um verme. Não terei
mais a minha tão sonhada festa lá no meu
apê. Covarde...um reles covarde.
E enquanto assim pensava para passar o tempo,
como um verdadeiro milagre, um estrondo abriu a porta do cativeiro. Um clarão
incidiu diretamente nos meus olhos e quase me cegou. No fundo da visão
recalcitrante um policial muito forte e bonito,
ou anjo da guarda, sei lá, veio ao meu encontro e foi puxando meu braço e dizendo:
- Doutor
o senhor está livre, venha comigo, o pesadelo acabou.
Ao sair pela porta arrombada, pude ver que
estava num bairro da periferia da cidade que já tinha passado algumas vezes e
nunca tinha reparado muito; milhares de
câmeras de televisão das maiores redes do País e do exterior transmitiam ao
vivo o feliz desfecho do sequestro e os repórteres insistiam:
E aí, como foi? Está bem? Saudades da esposa?
Da família? Dos amigos? Gostaria de dar uma declaração, Uma declaração por
favor estamos ao vivo? Diga Algo?!?!?!? Pra posteridade!?!?
Foi quando uma cerca viva de microfones
fechou-se em frente a minha boca seca e, sem escapatória, eu pude gritar em
alto e bom som para o mundo todo ouvir:
- EU QUERO UM COPO D'ÁGUA!
autor do texto: Luiz Tinoco Cabral - todos os direitos reservados
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