“Essa é a história da América. Todo mundo faz o que pensa que deve fazer”Jack Kerouac on the Road – o manuscrito original - 1ª. Edição Editora L&PM página 194”
No meu caso tudo começou em 1994 quando comprei o livro “On the Road”, pé na estrada, Editora Brasiliense, 9ª. Edição com tradução de Eduardo Bueno e do ribeirão-pretano e conterrâneo Antonio Bivar – o beatnik brasiliero(escritor do fantástico “Verdes Vales do Fim do Mundo” que todo mundo deveria ler); os personagens principais são Sal Paradise(Jack Kerouac) e Dean Moriarty(Neal Cassady). O livro é pautado por capítulos e partes e o nome dos personagens secundários originais como Allen Ginsberg e Burroughs foram também ligeiramente trocados, talvez para garantir um pouco a privacidade aos seus pares numa época em que privacidade ainda valia alguma coisa. Hoje só a Carolina Dieckmann se preocupa com isso. Agora passados dezoito anos releio a tradução com base no manuscrito original “On the Road”, Editora L&PM, também com tradução de Eduardo Bueno porém com a saída do querido Bivar entrando Lucia Brito. A diferença é gritante. Aqui não temos capítulos e os nomes não foram trocados o que torna tudo muito mais autêntico e verdadeiro.(e mais difícil de ler). Acabamos por manter contato com episódios reais de outros grandes escritores beatniks. O legal é que muito embora o livro se divida em 4 partes(as quatro viagens cruzando os Estados Unidos até a chegada ao México e retorno a Nova Iorque ), temos um contato muito maior com a prosa espontânea de Jack Kerouac que escreve com um único fôlego, como se fosse um único parágrafo nos dando uma idéia melhor da estética pretendida; o hoje inimaginável teclar ininterrupto numa máquina mecânica, folha única em formato de rolo. Mais ou menos como começar a escrever um romance com caneta em um rolo de papel higiênico do início ao fim(???) Você então fica imaginando. Será possível? Mas é bacana porque essa espontaneidade tem toda uma relação com o imediatismo e o niilismo e a alta velocidade do viver beatnik, (por mais que critiquem este rótulo, não deixa de ser didático não é?). “Eles eram como o homem melancólico com a pedra da masmorra, erguendo-se dos subterrâneos, os sórdidos hipsters da América, uma inovadora geração beat à qual eu estava me ligando lentamente”(pág 178) Bom....acho que estou parecendo um chatinho querendo ensinar o padre-nosso ao vigário. Mudando de assunto voltemos ao livro ou melhor ao ditado existencialista que motivou toda esta louca viagem. “sair é viver, ficar é apodrecer”. É nessa base teórica que o livro se ergue. Pós-guerra, um vazio existencialista muito grande e uma vontade absurda da juventude recuperar o tempo perdido com guerras, com mortes, com destruição em massa. Chega de Hitler, Mussolini, Pearl Harbor, Bomba Atômica! Então surgem as auto-estradas infindáveis, a “Route 66” e o impulso desenvolvimentista e de integração de um país imenso, sem uma ideologia ainda definida(e que ficou caretíssima e sacal). A descoberta do jazz misturado com blues, uma mistura musical e comportamental muito rica e a eclosão de seus monstros sagrados, todas as drogas, bebidas e carros velozes fazendo a cabeça de todos. Para rechear um pezinho na estrada das religiões orientais em contrapartida à sisudez das religiões moralistas americanas. Está criado o totem de uma geração que por acidente acabou sendo muito bem representada exatamente aqui neste livro que tento esmiuçar agora. Ao reler o livro tive a mesma emoção da primeira vez. ) “podia sentir o impulso da minha própria vida me chamando de volta”(página 227) É um livro que você não sai ileso. Ele provoca. E provoca muito. Vivemos hoje com a cultura capitalista do enquadramento, buscamos a aceitação para um emprego, para um reconhecimento social, para o amor e o relacionamento estável. Aliás estabilidade infelizmente é tudo para muitos! Jack e Neal buscavam exatamente o contrário. A vagabundagem sadia. A Irresponsabilidade. “Mãe quero ser vagabundo um dia”.(fls. 150). Como um bunda-mole de um burocrata engravatado que mora num condomínio fechado pode sair salvo de uma ideologia panfletária escancarada como está? Isso aqui está inclusive no trailler do Waltinho Salles, verdadeiro crime de apropriação indébita: “porque as únicas pessoas que me interessam são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam ou falam chavões...mas queimam, queimam, queimam como fogos de artifício pela noite”(pág. 129). Uau! Bom e por aí vai....pegando carona, arrumando um trocado aqui, outro acolá, dormindo na casa de amigos, nas ruas, fazendo bicos, fazendo sexo desenfreado, bebendo e fumando maconha, benzedrina ... nossos anti-heróis vão cruzando o seu próprio país várias vezes e desvelando as peculiaridades de locais como Frisco, Denver, Chicago, Los Angeles, Nova Iorque, e por fim o México Monterrey... com uma promessa que não se cumpre de uma continuação até os confins da América do Sul. E vamos pinçando pérolas como está: “e dirigi muitas centenas de monótonos quilômetros entre moitas nevadas e colinas sisudas e escarpadas(pág 296) “estava condenado à estrada e à investigação capenga de meu país”(pág. 318) “a estrada é a vida”(página 351). Páginas que revelam o sentimento que motivou o título muito bem apropriado. Talvez seja o maior exemplo de roteiro de “road movie” da estória da literatura que infelizmente, pelo visto, Walter Salles não conseguiu capturar no seu tão esperado filme e que recebeu uma reação fria de público e crítica em Cannes; Que peninha! Isso é pior que vaia! Kerouac pelo visto merecia mais! Como disse acima é um livro que clama pelo imediatismo da vida aqui e agora em todas as suas nuances. Não podemos perder tempo. A felicidade está aqui agora e não no etéreo e nem nos casamentos de fachada, na acomodação. Vamos viver a vida real que nos apresenta, enquanto ela é possível. Esse trecho reflete muito bem o espírito do livro e “AQUILO” que ele combate e “AQUILO” que ele busca: “Agora saca só esse pessoal aí na frente...Estão preocupados, contando os quilômetros, pensando onde irão dormir está noite, no dinheiro pra gasolina, no tempo, como chegarão lá...e vão chegar lá de qualquer maneira percebe. Mas eles têm que se preocupar, suas almas realmente não terão paz a não ser que se agarrem a uma preocupação explícita e comprovada e tendo encontrado uma assumem expressões faciais adequadas e seguem em frente, e tudo isso não passa, você sabe, de infelicidade, uma expressão falsa realmente falsa de preocupação e mesmo de dignidade e o tempo todo tudo passa voando por eles e eles sabem e isso TAMBÉM os preocupa TOTALMENTE”(página 347). Aliás e aproveitando o ensejo necessário frisar que apesar da linguagem ser fácil, espontânea, simples o livro não é fácil. Requer trabalho de leitura, concentração, doação de tempo e se possível uma caneta na mão como se fosse a peneira de um garimpeiro. Temos que explorar o livro como Kerouac explorou seu país”, “todo o país era como uma ostra a ser aberta por nós; e lá estava a pérola, a pérola estava lá.”(pág. 273). Confesso que alguns trechos li bebericando uma cervejinha gelada. Existem trechos longuíssimos, trechos superficiais, trechos sinceramente dispensáveis, partes chatas e repetitivas, temas secundários enfadonhos, sem contar as infindáveis personagens que cruzam a estrada e logo somem na névoa sem deixar vestígios e sem dizer a que vieram. Se você quer moleza melhor sentar no colo de um impotente sem Viagra ou ler Paulo Coelho que dá na mesma.(risos). Bom...bem...voltando ao livro é fácil observar que essa moçada “beatinique” influenciou tudo que aconteceu depois de “subversivo” de “vanguarda”; dos Beatles aos Rolling Stones, do movimento hippie aos movimentos pela paz, da Tropicália aos Mutantes até chegar no Bob Dylan e viva o Arrigo Barnabé. Utopia? Hoje depois de Chapman, Altamon, Reagan, Bush, Margareth Tatcher, Guerra do Iraque, queda das torres gêmeas, terrorismo, yuppies e o Robertinho do Recife poderíamos dizer que o livro já era. "- JÁ ERA!” Aliás o próprio Kerouac no fim da vida, desiludido com sua carreira e na merda de certa forma renegou o livro que escreveu como se “pé na estrada” fosse um “pé no saco”(vide peça do Mário Bortolloto sobre o tema); como se tudo tivesse sido uma grande loucura inconseqüente. Um despropósito, um despautério!(diria o Reinaldo Moraes) Só faltou falar como o FHC “-esqueçam tudo que escrevi”. Outro dia conversando com o escritor Marcelo Mirisola que recentemente mostrou-se(por motivos diversos) bem satisfeito com o insucesso da investida “beatinique” de boutique do Walter Salles , fez uma leitura bem “sui generis” e bem humorada de “On the Road”. Confesso que dei muita risada. Disse o “homem da quitinete de marfim” que talvez “On the Road” seja o maior romance gay da literatura mundial! Um escritor(Jack Kerouac) cruzando um País inteiro motivado por uma idolatria e um amor visceral ao amigo caubói, metido a playboy e pretenso escritor chamado Neal Cassady. Ah Ah Ah! Só o Mirisola mesmo não? Mas não tiro sua razão não... muito pelo contrário, sendo inclusive evidente o lado também homossexual do escritor que inclusive é confesso e inerente a muitos de seus amigos de estrada e de farras diversas onde rolava de tudo e mais um pouco. Porém não é isso que é importante no livro que aliás, no tocante, é muito velado. Para dar uma guinada de 180 graus e mais uma vez pinçando o próprio texto “é difícil resolver as coisas quando você vive dia a dia nesse mundo febril e tolo”(página 355). Vivemos “como se a taça da vida tivesse sido entornada e tudo houvesse enlouquecido”(pág 376). Desta feita, falando por mim e mais ninguém prefiro acreditar na mensagem do livro ainda hoje. Sou um otimista ingênuo é verdade... Acreditar na estrada, na magia e nas visões sobrenaturais e loucas que a cercam. No inóspito, no desconhecido, na aventura de viver.“agora vamos sair e curtir o rio e as pessoas e cheirar o mundo” (página 276). Isso é muito pessoal ok? Sempre adorei uma estrada! É só sair viajando que me transformo em outra pessoa, mais segura, mais satisfeita, mais feliz. Afinal e para ilustrar mais uma vez tem uma passagem do livro que também é ótima e que questiona várias coisas importantes. Daí talvez o sucesso e a importância que mantém o livro vivo até os dias de hoje inclusive sendo eleito um dos 100 livros mais importantes de todos os tempos, salvo engano pela revista New Yorker. Uma obra-prima sem dúvida. Com altos e baixos como já frisado acima mas uma obra-prima. Aí vão os questionamentos que me vem agora: O que é melhor a ordem ou o caos? O que é vida real o que é maquiagem e enganação? O que fazemos das nossas vidas? É legal? Trabalho? Grana? Status? Casamento? Qual o valor disso tudo? Vale a pena? Será que não é melhor simplesmente deixar rolar? Cair de boca na estrada ouvindo jazz? Aí vai a passagem, meio extensa eu sei... (haja saco!) mas como é para uma palestra sobre o livro lá no espaço “A Coisa” na Rua Amador Bueno 1300, tá valendo: “Tá sabendo que Louanne casou com um marinheiro em Frisco e vai ter um bebê?” “Sim. Estamos todos entrando nessa agora”. Ele me mostrou uma foto de Carolyn em Frisco com a nova menininha. A sombra de um homem obscurecia a menina na calçada ensolarada, duas enormes pernas de calças tristes. “Quem é esse?” “É apenas o Al Hinkle. Ele voltou para Helen, estão em Denver agora. Passaram o dia tirando fotos.” Ele me mostrou outras fotos. Percebi que eram essas as fotografias que nossos filhos olhariam algum dia com espanto, pensando que seus pais tinham vivido vidas ordeiras e tranqüilas e acordavam de manhã para percorrer orgulhosamente as calçadas da vida, sem jamais sonhar com a loucura esfarrapada e a balbúrdia, de nossas vidas reais, de nossa noite real, o inferno disso, a estrada do pesadelo sem sentido. Escândalos denunciam o mundo, os filhos jamais sabem.”(página 401) Então é mais ou menos por aí. A pergunta que não quer calar é: - Que fotos(exemplos/sonhos) você vai querer deixar para seus filhos(amigos/eternidade)? Só para terminar necessário desfazer uma confusão comum: uma coisa é Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinguetti, Bill Burroghs, Neal Cassady, Phillip Whalen, Gregory Corso, Charles Olson, Robert Creeley, dentre outros que são os Beats autênticos ligados por um laço estético, comportamental e expoentes de uma geração um tanto quanto coesa. Outra coisa totalmente dispare é Charles Bukowski e Henry Miller que sempre andaram à margem de qualquer movimento e com uma literatura única e isolada. Aliás o isolamento e o estranhamento é a marca desses ótimos escritores não afeitos a coesões. O que existe é uma influência direta ou indireta desses dois gênios em toda a turminha beat ali em cima, quer eles confessem ou não. Mas aí é outra estória. E tenho dito. “O amor é tudo” (página 282)
ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?
Há uma semana