"cuide bem de sua fé, faça tudo para a sua fé render..."
Outrora, em meados de 1993 quando tinha acabado a faculdade de direito e não tinha nenhum rumo a tomar, resolvi prestar concursos públicos. Logo eu que odiava rotinas, burocracia, protocolos, provas, autoridades e coisa que o valha. Mas a estabilidade....a respeitabilidade(perante a família é claro)....e principalmente senão exclusivamente o salário eram motivos fortes. Então para me concentrar na árdua batalha, montei meu bunker no porão da vovó. E lá ficava com aquelas apostilas ridículas e um abajurzinho sofrível tentando assimilar os "interesses difusos em espécie" ou mesmo os elementos "essenciais" do direito administrativo. As horas passavam lentas até o esperado grito da vovó lá em cima. - Hora do lanche; e a empregada descia com uma bandeja de prata com um pratinho e uma fatia de pão-de-ló + uma jarrinha de suco de caju. Bendita vovó! Tudo ia bem, mas o tédio e a minha falta de interesse pelo código comercial falavam mais alto. Comecei a olhar para os lados e a contar o número de desenhos na cortina, a quantidade de pontos no tapete...o número de revistas dispostas na estante...;Ato contínuo e como não tinha mais nada de interessante para fazer resolvi ler as revistas. Era uma grande coleção da extinta revista Cruzeiro. E foi lá que descobri os textos da Raquel de Queiroz, colunista assídua que na edição de 01 de agosto de 1959 publicou o texto intitulado "Nada é sagrado" que transcrevo agora parcialmente : "Todo o artista, quando não erige a si próprio um pedestal, pelo menos se isola, sem querer misturar com as demais raças dos homens, de quem não se considera igual(...) "Em busca dessa sinceridade Jean Jacques não se peja de contar que obrigava a pobre Tereza a enjeitar os filhos dele na roda dos expostos. Dostoiévski esmiuça até a exaustão os seus espasmos de epilético, a terrível embriaguez de seu vício incurável - o jogo. Gide expõe, perversamente as nuanças mais íntimas do seu desvio, e, achando pouco, não nos poupa sequer o espetáculo da frustração e ressentimento que é a vida da triste Emanuèlle O'Neill, esse arasta a família toda para a ribalta - a mãe morfinômana, os irmãos, o pai alcóolatra. E não se diga que eles foram grandes a despeito disso. Não, eles se chamam grandes precisamente por causa disso." Legal não? E assim prossegui lendo Raquel, dentre outros iluminados jornalistas e escritores no porão até que não precisei mais do abajurzinho sofrível , das apostilas e dos lanchinhos, diga-se, deliciosos. Que Saudades da vovó! Passaram-se 16 anos ou mais e nesse tempo todo prestei apenas um concurso público. Não passei. Graças aos céus! Ou a Raquel de Queirós...sei lá! Tanto faz.
Luiz Tinoco Cabral